Fernanda Mayara Sales de Aquino
Verso e reverso TV: memórias de uma política de
formação continuada de professores de jovens e adultos a distância
Exatamente encantamento provocou-me o livro em formato de E-book de Fernanda Mayara, resultante da tese de doutorado da autora, que chega ao público em muito boa hora. Traz à cena, com rigor e a amorosidade da partilha, mais uma pesquisa que busca, em fontes, produzir uma necessária leitura da história para que não se perca a memória de tantas ações políticas realizadas ao longo de contextos e momentos inquietos no campo da educação de jovens e adultos (EJA) e da respectiva formação de professores.
O tema abraçado por Fernanda tem imensa relevância por se tratar de ação complexa de formação de professores para a EJA que, quase ao final dos anos 1980, depois de a Fundação Mobral ter sido extinta em 1985 e a Fundação Educar vir substituí-la com novas formas de apoio, gestão e desenvolvimento de políticas para o campo, inaugura um novo programa de formação sustentado em mídias, o Projeto Verso e Reverso educando o educador, retomando veículos anteriormente utilizados, mas que guardavam, nas experiências realizadas, muitas críticas. Ainda hoje a temática da formação — inicial e continuada — desafia educadores e pesquisadores, que disputam concepções, epistemologias e estratégias de realização.
Tratado em três projetos — via televisão (em recepção aberta e em telessalas), via curso por correspondência1 e via rádio —, Verso e Reverso tem foco, na pesquisa de Fernanda Mayara, nas três séries de 24 programas cada uma (com ressalva para a terceira série, interrompida pela extinção da Educar), desenvolvidas como conteúdo e temáticas pela equipe técnica da Educar e roteirizadas e formatadas para a TV pela equipe da, então, TV Manchete.
Como se observa, nesses poucos dados, trata-se de projeto cuja memória indica diferentes rupturas ocorridas no país, desde a extinção de órgão público e seus projetos até o fechamento, por motivos que aqui não cabe destacar, de uma emissora de televisão de larga penetração em determinado tempo histórico. A descontinuidade e sobressaltos pelos quais passam iniciativas como esta não estão circunscritos ao poder público, mas atingem, inclusive, empresas privadas de comunicação, com concessão pública.
A investigação da autora não se deu apenas na análise dos programas: foi muito além. Ciosa do significado da guarda de uma memória como esta, iniciou pelo tratamento do material que fora convertido, anteriormente, da linguagem Betamax para DVD, sem, no entanto, o devido cuidado de manter cada programa identificado e em suportes separados, o que garantiria sua fácil busca e manuseio, sem risco de perda de sequência, entre outros. Capas, sinopses, créditos foram todos refeitos por Fernanda Mayara e podemos afirmar que, pela dedicação da autora, temos belíssimo conjunto cuidadoso e preciso, hoje cuidado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no setor de vídeos, vinculado ao Centro de Tecnologia Educacional.
Não bastassem esses elementos para reconhecer a qualidade do trabalho realizado, destaca-se a maior significância da pesquisa aqui apresentada, resultante da acuidade com que a autora perscrutou os programas: identificou e trouxe à luz concepções de formação continuada presentes nos programas e como estas se materializavam pelas práxis de professores — entrevistados e/ou filmados em seus fazeres pedagógicos.
A capacidade de um pesquisador viajar no tempo e ser capaz de (re)formular concepções de um dado período histórico demonstra, sempre, a potência do que a pesquisa pode oferecer ao tempo presente, para que se “leia” um projeto anterior não com as lentes do presente, criticando-o ou aprovando-o, mas sendo capaz de, embebido por concepções do presente, compreender contextos, cenários, formulações do passado vis-à-vis com fontes documentais, sejam relatórios, projetos entre outros.
Fernanda Mayara completou seu percurso de investigação em um mergulho em fontes existentes em acervos recuperados deste tempo, presentes especialmente no Centro de Referência e Memória da Educação Popular e Educação de Jovens e Adultos (CReMEJA) — um cenário de guarda de ações pela preservação de acervo documental e da memória oral. Não sendo da área da história ou da arquivologia, carecia de maior conhecimento sobre práticas de preservação e organização de acervos, sobretudo para trabalho com acervos audiovisuais. O compromisso de investigar e compreender práticas de preservação, tratamento e socialização de acervos documentais de educação de adultos e educação popular como os que vinham sendo desenvolvidos pela equipe de EJA na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde a autora se doutorou, motivou-a a buscar, também, outros lugares de memória. Vivências no cotidiano da pesquisa e essa necessidade a fizeram partir para uma bolsa sanduíche na França, em Rouen, na Normandia, visando conhecer a organização da memória da escola francesa, no Centre de Ressources du Musée National de l’Éducation, quando pôde se aprofundar nos meandros de guarda e preservação de arquivos e memória — fundamentais para a manutenção da história que vivemos.
Nos acervos do Centre de Ressources, imbuída da perspectiva de perceber aproximações e distanciamentos entre conceitos com os quais operava no Brasil, melhor compreendia a história da educação de adultos no contexto francês. No referido Centre encontra-se o setor administrativo e a reserva do Museu, sendo este um dos dois espaços do Musée National de l’Éducation (MUNAÉ); o outro, o Centro de Exposições, aberto ao público para visitação.
A decisão de Fernanda Mayara de partilhar com muitos pesquisadores seu minucioso e competente trabalho de recuperação de memória e interpretação de uma história vivida por tantos professores de EJA, pela formação continuada, é mais uma faceta da trajetória da pesquisadora — hoje docente na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Inquieta com a necessidade de disseminar a produção científica (especialmente tendo sido ela bolsista Capes), decide publicar seu trabalho, dando-se a ver e a seus achados, à rede de pesquisadores de EJA e de estudiosos da história da educação que, com frequência, desprezam a historiografia nesse campo, em favor de outros objetos.
Não preciso nem de fita métrica, nem de balanças, ou que tais, corroborando Manoel de Barros, para afirmar que o livro de Fernanda Mayara veio despertar em nós o encantamento da pesquisa e a importância que a memória, ao “virar” história, tem para pesquisadores e para o campo da educação de jovens e adultos.
Rio de Janeiro, 19 de agosto de 2023.
Jane Paiva